Intervenção na Líbia
Pio Penna Filho
Na semana passada as Nações Unidas autorizaram a criação de uma zona de exclusão aérea sobre partes do território líbio como forma de pressionar o regime de Kadaffi e com o objetivo específico de conter a reação violenta à insurgência iniciada semanas atrás. Trata-se, portanto, de uma intervenção internacional na Líbia sob amparo da ONU.
Inegavelmente existe um caráter humanitário em tal intervenção, afinal de contas a repressão da ditadura que se abateu sobre os insurgentes foi extremamente violenta e desproporcional, utilizando inclusive ataques aéreos contra áreas e alvos civis.
Mas a intervenção, mesmo admitindo-se o seu caráter humanitário, pode ser vista também como mais uma demonstração de velhas práticas imperialistas. Dessa feita, a ira de grandes potências (França, Inglaterra e Estados Unidos) que tradicionalmente fazem pouco caso dos direitos humanos ?dos outros?, se abateu sobre o regime líbio. E o que há de diferente entre a Líbia e muitos, mas muitos outros estados que sistematicamente violam os direitos humanos de parte importante de suas populações?
Para começar, temos que a Líbia é um estado rico em petróleo e o seu regime foi, durante muitos anos, visto como um grande problema pelas principais potências ocidentais (sobretudo pela acusação de sua associação ao terrorismo), não por acaso as mesmas que estão agora atacando o país. Sua proximidade geográfica com a Europa é outro fator que não deve ser menosprezado.
A leitura de que a intervenção na Líbia responde a meros anseios imperialistas é, contudo, eclipsada pelo fato de que a própria Liga Árabe está apoiando a criação da zona de exclusão aérea. Nesse sentido, a diplomacia Líbia não conseguiu conquistar sequer o suporte dos países árabes para evitar a intervenção. Nem dos árabes e nem dos africanos, haja vista que a Líbia também participa da União Africana.
Ademais, é preciso considerar a legitimidade dos grupos insurgentes e sua reivindicação por mudanças políticas. Todo povo tem direito de clamar por transformações quando a tirania se instala e esse é, precisamente, o caso em questão.
Kadaffi controla com mão de ferro a vida política, social e econômica do país há décadas e a percepção de que o seu regime era algo ?natural? e que trazia benefícios sociais foi se erodindo com o tempo.
A explosão de insatisfação em boa parte do mundo árabe foi a gota d?água que faltava para que o regime fosse contestado de forma mais consistente. Assim, o principal anseio por mudanças vem de dentro e não responde a estímulos exógenos, de tipo ?imperialista?.
Aliás, rotulados genericamente de ?rebeldes?, ?insurgentes, ?revolucionários?, dentre outras designações, ninguém sabe exatamente qual é a composição e orientação política desses grupos que lutam contra tiranos de diferentes tipos. O que sabemos, por enquanto, é que por ora ninguém controla esses grupos.
Enfim, a intervenção na Líbia é uma intervenção seletiva. É pouco provável que haja fôlego e disposição por parte das potências ocidentais para novas atitudes como essa, a não ser que a insatisfação alcance, de fato, a Arábia Saudita, país governado por uma monarquia absolutista mas amiga dos Estados Unidos.
Professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e Pesquisador do CNPq. E-mail: [email protected]